AMBIGUIDADE GENITAL

INTERSEXO. UMA MELHOR COMPREENSÃO PARA DESMISTIFICAÇÃO

Definição

Intersexo, como muitos gostam de chamar ou alterações do desenvolvimento sexual, um termo mais técnico, seria uma condição em que a criança nasce com algumas características gonadais, cromossômicas ou genitais, que não estão conformes entre si. Geralmente nascem com ambiguidade genital. Esta é caracterizada por um genital no qual há aspectos típicos do genital masculino e feminino. Alguns exemplos intersexo:

1) Presença de cromossoma XY (típico masculino) e uma vagina ou cromossoma XX e um pênis;

2) Ambiguidade genital;

3) Presença de cromossoma XY e ovário ou XX e testículo;

4) Presença de ovário e genital masculinizado ou testículo e genital feminilizado. Todas essas situações trazem um estresse grande para a família, já que a sociedade em geral coloca o gênero como uma questão central quando a criança nasce e daí por diante .

O primeiro acolhimento

Quando a criança nasce com suspeita de intersexo, profissionais com experiência devem ser consultados e o registro civil ser retardado até a avaliação médica. A neonatologista será a primeira a detectar a alteração genital. A ultrassonografia prenatal pode dar indícios. A partir daí um grupo constituído de geneticista, endocrinologista, psicóloga e urologista deve avaliar o bebê e acolher a família. Os pais deve ser confortados, esclarecidos sobre o problema e orientados com relação às possibilidades terapêuticas

O Estigma

Crianças que nascem com intersexo são comumente estigmatizadas e muitas vezes chamadas de hermafroditas, termo pejorativo e que deve ser abolido. Essa situação pode levar a família ao desespero a ponto de haver ruptura familiar e rejeição à criança. No longo prazo, muitos tendem a se “esconder” socialmente, dificultando a adesão do paciente ao grupo terapêutico. Urge desmistificar o estado de intersexo na sociedade para minorar ao máximo o sofrimento dos pacientes e dos familiares.

Aspectos clínicos

A característica de uma criança que nasce com intersexo é a ambiguidade genital. Esta é percebida como uma indefinição da genitália externa da criança, podendo assumir características mais masculinas ou mais femininas. A presença de testículos já caracteriza a criança como tendo o cromossoma Y. Entretanto, uma genitália aparentemente normal não exclui a possibilidade de intersexo. Por exemplo, um pênis pode ser visto em casos de hiperplasia adrenal congênita 46XX. Nessa situação não há gônadas palpáveis. Outros exemplos são os casos de insensibilidade androgênica completa 46XY, ou disgenesia gonadal pura, onde há cromossoma Y e a genitália externa é uma vagina.

Em outras palavras a aparência genital nem sempre condiz com o sexo cromossômico e com o tipo de gônadas. Há um tipo de problema que pode causar risco de morte. A hiperplasia adrenal congênita, tipo perdedora de sal pode fazer com que o bebê morra de desidratação e desequilíbrio hidroeletrolítico. O teste do pezinho tem diagnosticado precocemente esse problema e reduzido o risco.

Pessoas com gônadas intra-abdominais, principalmente nos casos de disgenesia gonadal têm um risco aumentado de câncer como seminoma ou gonadoblastoma. Nos casos de indivíduos XY criados como meninas, seja na insensibilidade androgênica ou na disgenesia gonadal, as gônadas precisarão ser retiradas em algum momento.

Como se formam os órgãos genitais?

A concepção de um bebê se dá pela união do óvulo (materno), que carregam o cromossoma X, com o espermatozoide (paterno), que pode ter o cromossoma X ou Y. Portanto, a partir dessa união, será determinado se o feto terá cromossoma XX (típico do sexo feminino) ou XY (típico do sexo masculino).

O cromossoma Y produz o fator determinante testicular. Este fará com que o testículo se desenvolva. Quando não há o fator determinante testicular, forma-se o ovário.

A formação do testículo ou ovário será primordial para o desenvolvimento dos órgãos reprodutivos e genitália externa. O testículo possui células de Leydig e de Sertoli. Estas últimas produzem o hormônio anti-Mulleriano. As estruturas Mullerianas são aquelas que fazem desenvolver as trompas, o útero e os 2/3 superiores da vagina. Portanto, se as células de Sertoli estão presentes e funcionando, as estruturas reprodutivas internas femininas não se desenvolvem.

As células de Leydig produzem testosternona. Este hormônio estimula a formação das estruturas wolfianas, ou seja, epidídimos, ductos deferentes e vesículas seminais. Portanto, havendo células de Leydig funcionantes, as estruturas reprodutoras masculinas se desenvolverão.

A testosterona, também, por ação da 5-alfa-redutase, transforma-se em dihidrotestosterona, que, por sua vez, faz o genital masculino se desenvolver. É necessário que as células do corpo sensíveis a esses hormônios para que eles tenham o efeito esperado.

Podemos ter vários tipos de alterações do desenvolvimento sexual.

46XX: as principais são a hiperplasia adrenal congênita, gestantes que usam hormônios masculinos e tumores produtores de hormônios masculinos na gestação. Na hiperplasia adrenal congênita, a principal causa é a deficiência da 21-hidroxilase, uma enzima adrenal que converte o colesterol em aldosterona e cortisol. Nesse caso o colesterol acumulado é transformado prioritariamente em andrógenos, o que faz com que o feto seja, em diferentes espectros, características masculinas.

46XY: insensibilidade dos tecidos ao hormônio testosterona, deficiência de 5-alfa-reductase e a disgenesia gonadal são as principais causas. Se não há sensibilidade dos tecidos à testosterona, mesmo quando há testículos, todo o aspecto físico (fenótipo), incluindo os genitais, ficam femininos. A 5-alfa-reductase transforma a testosterona em dihidrotestosterona, que é a responsável pela formação da genitália masculina. Logo, quando há falta dessa enzima, a genitália masculina não se forma adequadamente. Na disgenesia gonadal pura, não há produção de testosterona e hormônio antimulleriano. Logo, o genital externo é feminino e os órgãos internos também.

Ovotestis: existem situações onde há ovário e testículo na mesma pessoa. A genitália normalmente é ambígua e a pessoa pode ter os órgãos internos masculinos, ter trompa e útero ou nascer com ambos.

Fatores de risco

Uma história familiar pode ter influência no aparecimento de ambiguidade genital, como por exemplo:

  • Óbitos inexplicados na infância
  • Infertilidade, ausência da menstruação, puberdade precoce, excesso de pelos faciais nas mulheres.
  • Anormalidades genitais
  • Hiperplasia adrenal congênita

Avaliação inicial

A criança com intersexo precisa ser avaliada por um grupo especializado. Na Universidade Federal da Bahia contamos com uma clínica especializada com urologistas, geneticista, endocrinologistas e psicóloga. A pessoa é avaliada do ponto de vista clínico, laboratorial, com exames de imagem e, principalmente acolhida com respeito e dignidade.

A avaliação do cariótipo é importante para a definição do tipo de cromossoma. Exames laboratoriais como dosagens de eletrólitos, hormônio
antimulleriano, 17 hidroxiprogesterona, testosterona e outros são importantes na definição do diagnóstico. Uma ultrassonografia pélvica é comumente solicitada.

Na consulta se discutirão o diagnóstico, as causas, o risco de recorrência na prole, além de aspectos sobre a identidade de gênero e a fertilidade. Tendo todo isso posto, a criança será registrada com um sexo de criação. Países como a Austrália e Alemanha permitem que um terceiro gênero seja escolhido, o que não é permitido pela legislação brasileira.

Um aspecto importante na escolha do gênero de criação é a identidade de gênero que é como a pessoa se vê, se como sexo masculino ou feminino. Antigamente o médico sugeria um “gênero ótimo” de criação. Hoje sabe-se

que há um grande risco de equívocos com a identidade de gênero quando esse método é utilizado. Atualmente usa-se uma abordagem humanizada, que respeita o entendimento e a decisão da família com relação ao gênero de criação. Deve-se explicar à família todas as possibilidades e o conhecimento da literatura existente com relação aos tipos de intersexo, bem como o potencial de fertilidade em cada condição.

Hoje sabe-se que a impregnação cerebral de testosterona fetal e pós-natal “masculiniza” o cérebro fazendo com que as crianças e adultos, mesmo criados como meninas tendem a se expressar com um comportamento mais tipicamente do sexo masculino. Se essa impregnação é muito intensa, a identidade de gênero pode ser masculina apesar da criação no gênero feminino.

Por exemplo, na hiperplasia adrenal congênita, situação mais frequentemente encontrada, quando descoberta precocemente, a identidade de gênero é normalmente feminina. Como há potencial de fertilidade no futuro, já que há útero, trompa e ovários, essas pacientes são  geralmente criadas como sexo feminino. Há situações que nos deparamos com homens com hiperplasia adrenal congênita 46XX, que somente são diagnosticados depois dos 2 anos de idade. Nesses casos, o gênero deve ser mantido como masculino pelo alto risco de inconformidade de gênero no futuro.

Nos casos de insenbilidade androgênica completa ou disgenesia gonadal pura, pela inação da testosterona não há impregnação cerebral por esse hormônio. Portanto, a expressão e a identidade de gênero serão tipicamente femininas.

Nos casos de deficiência de 5-alfa-reductase, extrofia de cloaca ou agenesia peniana, as crianças devem ser registradas como sexo masculino pois muito provavelmente se identificarão com esse gênero no futuro.

Tratamento e medicações

O tratamento tem vários objetivos:

1) Dar conforto e apoio psicológico à criança e à família.

2) Tratar com medicações alterações hormonais seja com medicações que reduzam uma produção exagerada ou que reponham algum
hormônio que esteja faltando.

3) Correção da genitália externa. Essa será uma decisão da família com orientação do urologista pediátrico. Há casos em que podemos esperar para que o paciente defina no futuro como quer o seu genital.

A cirurgia genital

A cirurgia de feminilização consta de clitoroplastia, vaginoplastia e labioplastia, tudo em um tempo só. A glande torna-se um clitóris, a vagina é extraída de porções mais profundos do períneo e os lábios vaginais menores e maiores são confeccionados do prepúcio e eminências lábioescrotais. Com a evolução técnica e conhecimento anatômico, é possível obter-se um bom resultado cirúrgico, buscando-se preservar a sensibilidade do órgão. Quando não há vagina é possível construí-la com tecido intestinal ou enxertos.

O intersexo na sociedade

O conceito de gênero é muito arraigado na sociedade atual. Para se ter uma ideia, a pergunta mais feita aos pais que esperam um bebê é se é menino ou menina. Por isso, espera-se que certos comportamentos e expressões adotadas sejam típicas do gênero que a pessoa foi criada. Quando um menino pega uma boneca para brincar, esse comportamento é, na maior parte das vezes, recriminado pelos pais. Isso vai reforçando os estigmas comportamentais dicotômicos de gênero. Isso não quer dizer que a diferença entre os gêneros não tenha nada de biológico. Pelo contrário, há fortes evidências que a testosterona exerce efeitos no cérebro “masculinizando- lhe”. É impossível dizer no momento qual o papel da construção social e biológico na identidade de gênero.

O certo que é que devemos respeitar aqueles que não se encaixam na dicotomia de gênero, como é o caso de muitos pacientes com intersexo. Muitas vezes não se sentem homens ou mulheres. De outro modo, podem sentir-se como os dois gêneros ou mesmo como algo diferente que não sabem explicar. Por se sentirem diferentes e por medo da pressão social, se escondem, não se revelam e sofrem em segredo. Os pais e médicos frequentemente reforçam esse sentimento quando escondem do filho o que ocorre. Se há estigmatização em casa, será difícil mudar a sociedade. Deve haver um canal de comunicação permanente entre profissionais de saúde, pais e filhos e uma luta diária para que a sociedade respeite as diferenças.